Capítulo IV

-Estás atrasado! - Uma voz familiar de rapariga ecoou nos ouvidos de Kuroi ao entrar na sala dos cacifos.

-Acabei de sair da aula de Desporto, dá-me um desconto, não...? - Suspirou o rapaz, atirando-se para um banco.

-Nada de descontos, e onde está a gravata do teu uniforme? - Perguntou Sochin, inspeccionando-o. - E já agora, esse botão de cima está aí para alguma coisa!

Makoto sentou-se no banco no lado oposto, simultaneamente divertido e com pena de Kuroi nas mãos da sua irmã.

-Levar a gravata no bolso... Os teus pais nunca te ensinaram como vir vestido para a escola? - Reclamou ela novamente, obrigando-o a permanecer de pé enquanto lhe atava a gravata em redor do colarinho da camisa.

-Deixa-me fazer isso... - Disse ele, afastando lentamente as mãos da rapariga e atando ele mesmo o nó. - E não, não me ensinaram. A minha mãe morreu quando eu tinha 5 anos e o meu pai... Ele nunca quis saber de mim, tanto que agora vivo numa residência para estudantes.

A rapariga olhou para baixo.

-Lamento, não fazia ideia...

-Não tens de te desculpar. Já podemos ir?

Enfiou uma mão no bolso e segurou a pasta sobre o ombro com a outra. Também tinha arrumado um pouco o cabelo, dando uma impressão bastante mais séria e cuidada do que o costume e fazendo-o parecer mais com qualquer outro aluno da Academia. Ficava-lhe bem, de certa forma, mas o rapaz não parecia muito à vontade.





A noite caiu rapidamente para um dia de final de Primavera, ou talvez fosse apenas a mente de Kuroi que o traía.

Makoto parecia muito entusiasmado por lhe mostrar a sua colecção de Manga e videojogos. “Mas também”, pensou, “quando é que ele não está entusiasmado?

Ficou surpreendido ao notar que o mais velho dos dois irmãos estava a passar a tarde inteira a jogar videojogos enquanto Sochin fazia os trabalhos de casa. Ele próprio estava sentado a um canto, fazendo à pressa os seus trabalhos, mas não foi capaz de resistir à curiosidade.

-Makoto, diz-me uma coisa...

O loiro pareceu apanhado de surpresa por um instante antes de pausar o jogo, tirar os auscultadores e se voltar para trás.

-O que foi, Senpai?

-...Não tens trabalhos de casa?

-Oh, isso... Fiz tudo durante as aulas e o intervalo para almoço, para poupar tempo. - Respondeu prontamente. - É bastante fácil. E os teus, como estão a correr?

-Hm, estou só a rabiscar as respostas por baixo das perguntas no manual... Acho que acabei. - Respondeu Kuroi.

Na verdade ainda tinha muito para resolver, mas não conseguia resistir à vontade de fazer outra coisa qualquer.

-Tenho um comando a mais se quiseres jogar. - Sugeriu Makoto. - Que te parece?


O outro olhou discretamente para as próprias mãos e hesitou por um segundo.


-...Acho que não sei jogar videojogos muito bem. - Disse, colocando de lado as suas coisas, levantando-se e andando na direcção da janela.



A brisa fresca soprou-lhe no rosto e transmitiu-lhe uma sensação de alívio e calma, fazendo-o esquecer por longos momentos tudo o que o rodeava.



Quando voltou a olhar para dentro de casa, Sochin estava de pé atrás de si. Deu por si a pensar que o top sem mangas e os calções cor-de-rosa faziam-na parecer ainda mais baixa.

-Não tens um quintal onde vives? - Perguntou a rapariga, na voz mais suave com que Kuroi alguma vez a ouvira.

-A residência é principalmente para alunos da universidade que não têm dinheiro para apartamentos. Não tem grande coisa, mas comparado a viver com o meu pai...

-Tu e o teu pai não se dão mesmo nada bem, pois não...?

-Estou melhor longe dele, é tudo. - Respondeu Kuroi. O seu olhar parecia distante.

-Lamento ter tocado no assunto... Mas então como é que pagas pela residência?

-Trabalho para o gerente de um armazém aqui perto. Sinceramente acho que ele está neste momento a ferver de raiva por não ter aparecido para trabalhar hoje, mas assim que me for embora deste mundo não me vai fazer qualquer diferença... - Disse ele, divertido.

Ela tentou imaginar como seria o patrão do rapaz, mas só lhe vinha à cabeça a imagem de um velhinho baixo e gordo com bigode e a cara totalmente vermelha de irritação. Soltou um risinho.

-Mas eu ainda não sei como abrir portais...

Ele sacudiu levemente a cabeça.

-Não te preocupes. Quando chegar a altura certa, tudo ocorrerá naturalmente.

-Como é que sabes isso? Ou estás apenas a assumir...

-Já tive contacto com outros Mediums, mas... Uh, deixa.

Sochin fez uma expressão estranha. Ainda só se conheciam há uma semana, mas ainda tinha a sensação de que ele lhe escondia muito do que ela queria saber.

-Bem, também ainda gostava de saber o porquê de quereres ir a esse outro mundo...

-Dreffel.

-Huh?

-”Esse mundo”, chama-se Dreffel. Vais saber mais sobre ele... a seu tempo.

-AAAH, ÉS IRRITANTE! - Gritou ela. - Sempre a dizer coisas como “a seu tempo”!!

-E tu és barulhenta, demasiado barulhenta! - Respondeu ele, tirando os dedos das orelhas. - Contar-te-ia tudo de uma vez se pudesse! Mas de qualquer forma não vim aqui só para comer e dormir de graça...

Ela fez beicinho.

-Sinto que vais demorar o fim-de-semana todo para dizer algo de relevante...

Talvez não tenhamos tanto tempo”, pensou para si próprio.

Mas, no exterior, apenas lhe respondeu com um sorriso gentil.






Pouco antes do jantar, os pais dos dois irmãos chegaram. Kuroi descobriu que ambos eram biólogos e tinham acabado de chegar de uma conferência.

A mãe, Kime Hanako, era uma mulher baixa de meia-idade. Era bonita para os anos que tinha e parecia simpática mas de poucas palavras. Em termos de aparência, Makoto parecia ter herdado muito dela. No entanto, o pai dos dois não era japonês. O seu nome era Frederick Stuart, um imigrante americano alto e de cabelos claros. Talvez devido ao seu físico, tinha um aspecto mais adequado a um operário do que a um cientista.

Foi surpreendido pela diferença nas acções de ambos; em contraste com a mãe dos dois irmãos, que parecia um pouco séria, o seu pai era uma pessoa bastante animada e descontraída que o fez sentir à vontade de imediato. Era como se, pelo mero facto de ser estrangeiro, esse homem não fosse tão rígido como o rapaz teria imaginado antes de o conhecer.

Kuroi gostava dele, talvez mesmo se sentisse feliz em ter alguém assim como seu próprio pai.

-Então... Kuroi, certo? Tens que idade?

-D-dezasseis! - Respondeu o rapaz, desviando-se dos seus pensamentos. Só então reparou que nem tinha começado a comer, apenas segurava a tigela de comida numa mão e os pauzinhos na outra.

-Oh, então és mais velho que o nosso Makoto. - Disse Frederick, dando uma palmadinha na cabeça do filho com talvez um pouco de vigor excessivo. - Espero que este rapaz não te chateie muito, tem montes de energia!

Makoto fez uma expressão como se quisesse reclamar. Kuroi sorriu e sacudiu a cabeça, começando de seguida a comer.

A comida caseira era deliciosa. Na residência ele nunca sonhara comer algo tão bom a uma refeição normal. “São os contras de uma vida provisória”, pensou para consigo enquanto apreciava outro pedaço. Mesmo em Dreffel, não havia um lar à sua espera.

Lá no fundo ele desejava viver daquela forma para sempre, com comida deliciosa e alguém que o obrigasse a vestir correctamente o uniforme antes de sair de casa.

Uma família.





Como fazia calor, e talvez para parecer mais considerado do que se usasse a cama, Makoto estendeu um futon de Verão para si junto ao que colocara para Kuroi dormir. Apesar de o quarto ser um tanto desarrumado, era grande e acolhedor. Mesmo estando calor, o mais velho trazia vestida uma camisola de manga comprida para dormir.

-Normalmente eu acordo tarde, mas fica à vontade para me acordares de manhã se estiveres aborrecido. - Disse o mais novo. - Há imensas coisas que gostava de falar contigo!

Será que perdi o juízo?”, pensou Kuroi enquanto acenava afirmativamente com a cabeça. “Normalmente pessoas assim são irritantes, mas mesmo não o conhecendo bem sinto que posso confiar nele...

Era verdade. Makoto tinha algo que fazia os outros sentirem-se confortáveis à sua volta, apesar de toda a sua energia, e no entanto não se tratava de um feitiço; Kuroi nunca havia conhecido um humano tão normal.

-Ah... Também me podes acordar de noite se for preciso. - Respondeu o rapaz de cabelo castanho após afastar da sua mente estes pensamentos. - É embaraçoso e não acontece há muito tempo, mas às vezes eu falo enquanto durmo...

O loiro riu levemente.

-Não faz mal, visto que não estamos na escola posso dar-te uma canelada sem parecer falta de respeito... Nee, Senpai?

-Não te estiques, Makoto-kouhai! Posso sempre manter-te acordado a noite toda!

Os dois rapazes riram-se, mas Kuroi rapidamente mudou a sua expressão e fitou o outro nos olhos.

-Agora falando a sério... - Disse. - Amanhã de manhã também preciso de falar contigo. Tem a ver com a tua irmã.

Apesar do tom de voz grave, pôs algum ênfase na última frase. Makoto olhou-o gravemente.

-Não penses nisso agora, descansa. - Acrescentou Kuroi prontamente, esboçando um sorriso para o tentar acalmar. - Nem devia ter falado nisto quando estamos os dois com sono. Boa noite.

-Boa noite... - Respondeu o loiro, deitando-se com um suspiro.

As luzes apagaram-se e o jardim iluminado pela lua tornou-se visível através da janela aberta. As rosas brancas de um vaso estavam tingidas de um azul forte, quase como se tivessem brilho próprio. Kuroi ainda passou algum tempo a admirá-las e a fitar a lua em crescente antes de adormecer.

Era uma noite verdadeiramente bela.





Nesse Sábado, bem cedo, a campainha da porta tocou. Como nenhum dos rapazes tinha saído ainda do quarto, Sochin deixou um último pedaço da tosta que estava a comer como pequeno-almoço sobre a mesa e foi abrir.

Que estranho, nunca temos visitas de manhã cedo...

No degrau da entrada, uma adolescente de figura elegante com longos cabelos negros e olhos cor de âmbar cumprimentou-a com a sua voz quente.

-Bom dia, Mera-san... O que é que te traz aqui? Como é que sabias onde era a casa?

-Oh... Estou por acaso a viver aqui perto e vi-vos chegar ontem depois das aulas. Pensei que fosse boa ideia aparecer para um cumprimento e... Se não te importasses, dá para falarmos um pouco? Como ainda não conheço muita gente por aqui...

-Não me importo, mas... Sabes que o Kuroi-kun está aqui, certo?

Mera baixou o olhar.

-Já arrefeci as ideias desde então. Evitá-lo é impossível visto que estamos na mesma turma...

Sochin acenou com a cabeça e deixou-a entrar. As duas sentaram-se no sofá.

-Queres tomar alguma coisa? Ainda tenho chá quente na cozinha.

-Obrigada, mas já comi. Nee, Kime-san...

-Podes tratar-me pelo nome próprio. - Respondeu a rapariga de cabelos loiros. - Mas, estavas a dizer?

-Eh, a sério? Bem... então... So-chan? - Mera hesitou. - Pergunto-me como é que tu e o teu irmão conheceram o Kuroi...


Sochin estava prestes a explicar-lhe, mas ficou em silêncio. Se revelasse a razão pela qual Kuroi a raptara quando se conheceram, a outra jovem provavelmente não iria acreditar. E mesmo que o fizesse, manter as suas habilidades em segredo tinha sido uma regra tácita entre si e Makoto desde a primeira vez que tinha revelado sinais de um poder fora do comum.


-Ele... protegeu-nos de um bando de gangsters há algum tempo, e desde aí o meu irmão parece gostar de andar junto dele. - Respondeu finalmente, tentando não mentir demasiado. - Acabámos por o convidar para estudar cá em casa durante o fim-de-semana como agradecimento.

-Então ele não mudou mesmo nada... Continua a meter-se em problemas, seria óptimo se vocês o conseguissem afastar de tudo isso... Mas acho estranho que ele esteja a estudar, sempre teve tanta facilidade em aprender que fazia tudo sem esforço...

-Bem, a Secundária é algo mais sério... - Disse a mais nova.





-Makoto... Preciso de te pedir uma coisa.

O rapaz loiro pestanejou várias vezes enquanto se sentava direito. A voz séria de Kuroi voltava a preocupá-lo.

-Força...

-Até onde estás disposto a ir para proteger a tua irmã?

A pergunta apanhou de surpresa o mais novo, mas não o fez hesitar.

-Ela é a minha única irmã e estamos juntos desde sempre... iria a qualquer lugar deste mundo por ela! - Respondeu com convicção.

-E se for outro mundo?



-...



Um silêncio esmagador engoliu-os, interrompido apenas pelas vozes abafadas das duas raparigas na sala.

-Correu tudo mais depressa do que eu esperava. - Kuroi foi finalmente capaz de dizer. - Há mais pessoas atrás da Sochin do que eu consigo impedir. Não posso dar-te mais do que a minha palavra, mas a Mera não é a estudante inocente que parece...

-E-então... Ela é perigosa? Temos de afastar a Sochin dela agora mesmo!

-Se nos metermos entre elas assim, a situação pode ficar completamente fora de controlo. A Mera é como eu, apesar de sermos inimigos.

Como ele...

Makoto reflectiu sobre estas palavras por momentos. Já vira Kuroi derrotar um grupo de gangsters com pouco esforço e saltar de um telhado, mas aquilo que lhe permitia fazer tudo isso permanecia um mistério tão grande como aquele que rodeava a sua própria irmã.

Era precisamente por isso que tinha de cooperar. Com um ligeiro aceno, o destino estava decidido para essa manhã.

-Não vai ser fácil, e vou precisar da tua ajuda. Prometo que quando estivermos a salvo vou explicar-vos tudo o que sei, sem mais segredos.

-...Farei o que me disseres.

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